- Que você quer ser quando crescer?
- Pai! - respondeu, sem pestanejar, Camilinho, aos sete anos.
Para a criança, a paternidade era a melhor coisa do mundo. Amava o pai com todas as forças que seu jovem coração poderia suportar. Amava e era amado. Por isso, acreditava tão cedo, que ser pai era uma vocação, "coisa linda de Deus", como ouvia a avó dizer. O pai, "Seu" José, não era rico e tampouco bonito. Gordo, careca, sempre suado, dentes amarelados pelo cigarro e corpo excessivamente peludo. O amor pelo filho, entretanto, era diretamente proporcional a sua feiúra. Amava tanto aquela criança, que se tornou ateu, pois não entendia como Deus havia dado "seu único filho", para morrer pela humanidade. José sacrificaria o último ser humano, por amor de sua cria. Camilinho sentia esse amor, pois o pai o exalava, como exalava aquele suor que lhe era característico. Crescendo com tão bom exemplo, como poderia não desejar a paternidade?
A despeito da pobreza, pai e filho se sacrificavam um pelo outro. Este não pedindo nada que, comumente, as crianças pedem; aquele matando-se de trabalhar, para dar ao filho aquilo que ele não pedia. A família não jantava, fazia festas. Mesmo com muito trabalho, "Seu" José fazia questão de sentar à mesa com o filho. Era um momento de profunda intimidade, de conversas afetuosas e conselhos. O pai ouvia, com atenção, cada palavra dita pelo seu pequeno, como se a saboreasse junto com o jantar preparado pela esposa.
Por causa desses tempos felizes, Camilinho, agora Camilo, casara-se cedo, aos 19 anos. Manifestou imediatamente à esposa a vontade de ter filhos tão cedo quanto possível. De fato, 3 meses após o casamento, sua mulher engravidou. Camilo recebeu a notícia na hora do almoço, passou mal, ficou tonto e desmaiou. A esposa quase aborta, de tanta preocupação. Passado o susto, Camilo era todo sorrisos. Cantarolava o dia todo, distribuía muitos "bons dias" na rua, cumprimentava desconhecidos e até comprou um adesivo para seu carro: "Bebê a bordo". Quando perguntado se queria menino ou menina, Camilo respondeu que poderia ser qualquer um, que seria bem-vindo. Queria dar amor, queria repetir a infância feliz, queria admirar e ser admirado. Por essa época, "Seu" José já era falecido. Isso, para Camilo, representou uma responsabilidade a mais: deveria perpetuar o pai através de seu filho.
Nove meses depois, a esposa sentiu as dores do parto. Desembestado, Camilo acudiu para a maternidade, sentido, ele também, as contrações da esposa. Seria pai! Camilo não fumava, mas, enquanto esperava o parto, virou uma fogueira de São João, tanta fumaça soltava, pois dera-lhe na telha comprar cigarros. Achou que era um dever paterno encher os pulmões de monóxido de carbono na chegada do primogênito. Parto difícil. Camilo se desesperava, na sala de espera. Viu uma mulher de branco se aproximar e a abordou nervosamente: "E então, enfermeira? Nasceu? Nasceu?". "Não sou enfermeira, moço, sou espírita". Acabaram-se os cigarros, e Camilo começou a roer as unhas. Na nona unha, o médico chegou: "Senhor Camilo? O Senhor teve um menino". Camilo era só lágrimas. Chorou como um bebê. Deve ter chorado, inclusive, mais que seu filho recém-nascido. Sem fôlego, sem forças e sem unhas, Camilo foi encaminhado para o berçário. Ao chegar, através do vidro, uma auxiliar de enfermagem apontou o pequeno bercinho.
Camilo arregalou os olhos. Ficou lívido. As pernas fraquejaram. Teve que se apoiar, para não desabar no chão. Não podia acreditar no que via. Não. Aquele não era seu filho. A criança tinha lábios leporinos! Aquele arremedo de lebre não poderia jamais ser seu filho tão esperado. Jamais! Camilo teve raiva, muita raiva! Esperara anos, e tinha, agora, um ogrinho. Foi pior na hora em que a esposa tentou amamentar a criança. Camilo obersavava, com repulsa e horror, o leite materno escorrer pela fenda labial. Quando a criança se engasgou, Camilo explodiu de raiva, chamou a esposa de maconheira, culpou-a pela má-formação do bebê, acusou-a de ter transado com um coelho, fez um inferno. Deixou o hospital e foi beber.
De madrugada, Camilo voltou ao hospital. Entrou no quarto da esposa e percebeu que o bebezinho dormia ao lado do leito da mulher. Ambos dormiam, na verdade. O jovem esticou o pescoço e observou a criança. Teve nojo. Bêbado de álcool, tristeza e frustração, Camilo aproximou-se do bercinho. De perto, o filho parecia-lhe pior ainda. Silenciosamente, tocou o rosto do filho e sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. Em seu coração, tocara o rosto do diabo. Silenciosamente, Camilo pôs a mão espalmada no rosto do bebê e sufocou o próprio filho. Pronto. Estava morto. Agora, poderia sonhar em ser pai novamente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário